terça-feira, 1 de julho de 2008

"Revolução dos Cravos" em São Januário





"Foi bonita a festa, pá. Fiquei contente. Ainda guardo renitente um velho cravo para mim." Esses versos de Chico Buarque se referem à Revolução dos Cravos, acontecimento histórico que no ano de 1974 marcou o fim do salazarismo em Portugal. Antônio Salazar, de 1933 a 1968, governou com mãos de ferro os destinos lusitanos. Em 1968, assumiu em seu lugar Marcelo Caetano. As diretrizes políticas de Caetano pouco se difereciaram em relação às de seu antecessor, uma vez que a ditadura e o neocolonialismo ultramarino continuaram em seu governo. Daí convencionalmente o fim do regime salazarista ser marcado somente em 1974. Dessa forma, foram 41 anos de Estado Novo, a ditadura moldada por Salazar em Portugal.

Coincidentemente, os mesmos 41 anos foram o tempo em que Eurico Ângelo de Oliveira Miranda esteve envolvido nos rumos do Club de Regatas Vasco da Gama. Em 2008, Eurico e seu grupo foram finalmente derrotados, tendo fim um nefasto regime ditatorial dentro do Vasco. Daí o dia 28 de junho de 2008 ter marcado a "Revolução dos Cravos" cruzmaltina.

Eurico Miranda é um filho de portugueses que se mudaram para o Brasil, na década de 30, fugindo exata e ironicamente do regime salazarista. Desde moço ele se interessou pelo Vasco da Gama e em 1967 conseguiu seu primeiro cargo administrativo no clube. A partir daí pouco a pouco foi construindo e aumentando seu prestígio dentro do Vasco. Tanto é verdade que, já em 1982, Eurico concorreu pela primeira vez à presidência do clube. Foi derrotado em 1982 e também em 1985 pelo mesmo homem, Antônio Soares Calçada. Este, ao perceber o expressivo e crescente prestígio de Eurico Miranda no clube, o convidou em 1986 para ser seu vice-presidente de futebol. Em outras palavras, Eurico passaria a ser o homem forte do futebol do Vasco.

A partir daí, Eurico Miranda foi se popularizando cada vez mais dentro do Vasco da Gama. Isso, em larga medida, porque o clube passou a viver um período de muitos títulos. Em 15 anos como vice-presidente de futebol, Eurico "deu" ao Vasco um título da Copa Libertadores da América (1998), três campeonatos brasileiros (1989, 1997 e 2000), uma Copa Mercosul (2000), um Torneio Rio-São Paulo (1999), seis campeonatos cariocas (1987, 1988, 1992, 1993, 1994, e 1998), além de outros títulos de menor relevo. Além disso, devido à sua personalidade forte, briguenta e explosiva, passou a peitar a tudo e a todos "em nome dos interesses do Vasco", como ele gostava de dizer. Prova disso é que ele comprou brigas até mesmo com grupos poderosos, como a Rede Globo e a CBF. Naturalmente, ele passou a ser considerado um grande líder dentro do clube.

Não obstante, ainda durante sua estada na vice-presidência do departamento de futebol do Vasco, foram aparecendo inúmeros indícios de que Eurico Miranda era altamente corrupto. Nos idos de 1999-2000-2001 foi feita uma devassa em sua vida. Primeiramente a imprensa, depois a CPI do futebol, em 2001, transformaram os indícios de corrupção em evidências. Verificou-se que a administração vascaína tinha uma série de irregularidades e que Eurico Miranda era um homem riquíssimo. Vale dizer que Eurico possui mansão em Angra dos Reis, iates, entre outras coisas, e só fuma charutos dos mais caros do mundo. Como ele é um advogado e fisioterapeuta que pouco exerceu essas duas profissões, constata-se que sua riqueza adveio ilicitamente do Club de Regatas Vasco da Gama. Mesmo assim, ele foi absolvido em seu processo de cassação na Câmara dos Deputados e, nesse momento, continuou seguindo sua vida normalmente no Vasco.

No final de 2000, Eurico Miranda foi eleito, finalmente, presidente do Club de Regatas Vasco da Gama. Algo mais do que esperado, visto que àquela altura o Vasco caminhava para seu quarto título brasileiro e para a conquista da Copa Mercosul, ou seja, tinha um grande time de futebol. Aliás, é típica da cultura brasileira a vista grossa à corrupção quando as coisas nos outros aspectos estejam indo e acontecendo "mais ou menos bem". Em outros termos: o "rouba, mas faz". Assim, Eurico tomou posse no início de 2001 e, curiosamente, seu primeiro ato como presidente foi o de colocar o logotipo do SBT na camisa do Vasco. Isso foi em janeiro de 2001, no jogo remarcado contra o São Caetano (já que parte do alambrado de São Januário havia caído e o jogo em questão foi suspenso), valendo o título do campeonato brasileiro de 2000. Não preciso nem falar que foi um ato de forte hostilidade à Rede Globo, que vinha engrossando o caldo anti-Eurico e foi obrigada a transmitir a final com o logo da concorrente em destaque na transmissão.

Já em 2001, o futebol do Vasco da Gama dava os primeiros sinais de decadência. Pouco a pouco seus principais jogadores foram saindo, muitos deles, inclusive, tendo colocado o clube na justiça em função de dívidas trabalhistas. O dinheiro do clube foi secando (os títulos idem) muito em função da péssima imagem que Eurico Miranda transmitia aos investidores. Além disso, a administração anterior (Calçada, presidente do clube até 2001, e Eurico, o todo-poderoso do futebol do clube) criou uma dívida astronômica no Vasco.

Assim, as críticas externas ao clube foram cada vez se acentundo mais. A novidade foi o começo de uma movimentação da oposição no clube. Entrou em cena aí o maior ídolo da história do Vasco, Roberto Dinamite. Ele, como não poderia deixar de ser, passou a tecer críticas em relação ao modelo Eurico Miranda de administrar. Além de problemas financeiros e contábeis, sua administração já era fortemente marcada pelo autoritarismo. Sócios ou conselheiros do clube que discordassem dos métodos de Eurico, passaram a simplesmente ser expulsos do clube por ele. Foi exatamente isso que aconteceu com Roberto Dinamite, no início de 2002. Dinamite estava com seu filho na tribuna de honra de São Januário, assistindo a um jogo do Vasco, quando de repente foi expulso do estádio e do clube. A partir daí, Roberto estava expressamente proibido de entrar no clube. Olhando retrospectivamente, este ocorrido marcou o começo do fim da "Era Eurico Miranda" no Vasco da Gama.

Roberto Dinamite começou a se articular com o Movimento Unido Vascaíno (MUV), um grupo de vascaínos ilustres, fundado sem muito destaque em 1997. E a partir de 2002, Roberto manifestou o desejo de concorrer à presidência do Vasco. As eleições seguintes ocorreriam em 2003. Assim sendo, Roberto foi para o pleito de 2003, mas foi derrotado por Eurico Miranda. Gravíssimas acusações de fraude foram feitas, mas nada que impedisse a nova posse de Eurico na presidência do clube.

O Vasco da Gama continuou sem grande destaque no cenário futebolístico até 2006 (o único título do clube, desde 2000, tinha sido o campeonato carioca de 2003), ano de novas eleições. Novamente, Eurico Miranda e Roberto Dinamite medindo forças. Este um candidato cada vez mais forte, aquele um sujeito cada vez mais desgastado e controverso. Mas Eurico detinha a máquina administrativa do clube. Sendo assim, ele novamente derrotou Roberto. Desta vez, não foram encontrados somente indícios, mas também provas contundentes de fraudes no pleito. Dessa forma, o grupo de Dinamite acionou a justiça.

Entre idas e vindas, encontros e desencontros, guerra de liminares e tudo o mais, finalmente, em junho de 2008 foram marcadas novas eleições no Vasco, já que Eurico Miranda vinha exercendo o poder interinamente desde novembro de 2006. Eurico ainda tentou melar a decisão judicial outras vezes e numa atitude de claro desespero decidiu boicotar o pleito. Ora, sempre quando alguém boicota uma eleição, o faz porque sabe que não tem a menor chance de vencê-la, tentando dessa forma - como última cartada - pelo menos desestabilizar e deslegitimar o processo. Nesses casos, quase sempre o tiro sai pela culatra e a derrota apenas se torna mais fragorosa e humilhante. Foi exatamente isso que aconteceu e Roberto venceu com enorme folga no voto dos associados. Faltava apenas sua chapa ser sufragada no conselho dos beneméritos do Vasco da Gama, visto que no clube as eleições são indiretas. Isso ocorreu no dia 28 de junho, novo dia histórico para a grande maioria dos vascaínos. Como diz o título deste texto, a "Revolução dos Cravos" em São Januário.

Saldo da gestão Eurico Miranda enquanto presidente do Club de Regatas Vasco da Gama (2001-2008). Títulos: um campeonato carioca (2003). Dívidas trabalhistas estipuladas: 50 milhões de reais. Dívida total estipulada: 300 milhões de reais. Processos trabalhistas contra o clube: 77. Prejuízo adicional: oito anos parado no tempo. Sem nenhuma dúvida, Eurico deixa para Roberto Dinamite uma verdadeira herança maldita.

E assim mais uma vez se moveu o trem da história. De agora em diante, Roberto Dinamite tem um duríssimo desafio pela frente. Administrar um clube com muitas dificuldades financeiras não será nada fácil. Ele e seu grupo vêm dizendo que têm muitos patrocinadores à vista. Assim espero, enquanto vascaíno que sou. De todo modo, Roberto só não tem direito a duas coisas no comando do clube: fazer uma gestão corrupta e ter uma postura antidemocrática. Tenho quase certeza de que não agirá dessa maneira. Portanto, decência e espírito democrático (coisas que estiveram longe de São Januário nos últimos anos) estão de volta. A esperança é que, além disso, Dinamite faça uma gestão suficientemente competente para devolver ao Vasco, no médio prazo, a condição de grande força do futebol brasileiro e internacional. Torço muito para isso.

Pois é. A história novamente fez mais uma das suas. Geralmente quando algo está caótico e em crise surge alguma coisa boa em seguida. Assim, novamente o Club de Regatas Vasco da Gama foi vanguarda. O clube tem uma história belíssima. Foi o primeiro a aceitar negros e operários em seus elencos e construiu São Januário com seus próprios esforços (sem ajuda estatal para nada, algo bastante incomum à época e hoje). Tudo porque os elitistas grandes clubes do Rio de Janeiro, do início do século XX, determinaram que o Vasco só poderia pertencer à liga de futebol do Estado se tivesse um estádio para jogar. A partir desses feitos o Vasco ganhou muita força e popularidade no Brasil, sendo um dos gigantes do esporte no país. A gestão Eurico Miranda manchou um pouco tudo isso e tornou o clube antipático para as demais torcidas e para potenciais novos torcedores. Portanto, Roberto Dinamite está sendo o resgate do Vasco enquanto clube de vanguarda, afinal, é o primeiro ídolo de um clube brasileiro a se tornar seu presidente. Então, por tudo isso, vascaínos de todo o Brasil estão bradando nesta semana: "Ao Vasco nada? Tudo!!! Então como é que é? Casaca! Casaca! Casaca, zaca, zaca! A turma é boa! É mesmo da fuzarca! Vasco! Vasco! Vasco!"