terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Pra não dizer que não falei das flores




No último dia 13, completaram-se 40 anos da decretação do Ato Institucional n° 5, para muitos o ato mais autoritário da história política brasileira. O decretum terrible, nas palavras do historiador Carlos Fico. Para Elio Gaspari, o ato iniciou uma nova fase dentro da ditadura militar brasileira, a Ditadura Escancarada. Em suma, decretou-se o golpe dentro do golpe.

Com efeito, o AI-5 foi gestado pelo menos duas décadas antes. Os contatos das forças armadas brasileiras com as estadunidenses durante a Segunda Guerra Mundial nutriu uma grande admiração daquelas em relação a estas. Dessa forma, já no imediato pós-guerra, em 1949, foi criada no Brasil a Escola Superior de Guerra (ESG). Coube a ESG a formulação da chamada Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Essa doutrina esmiuçou no Brasil vários elementos típicos do período da Guerra Fria. Termos como "inimigo interno", "defesa nacional", "guerra total", "império soviético", "contra-revolução" deram o tom das elaborações da ESG.

Mas o que isso tem a ver com o AI-5? Ora, o AI-5 abarcou, aprofundou e decretou todos esses elementos trabalhados pela ESG. O decretum terrible visou um controle quadripartite da sociedade brasileira, a saber: controle político, econômico, psicossocial e militar. Tudo isso refere-se frontalmente à Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento.

Viajemos então ao ano de 1968. Os militares da chamada linha dura (que haviam chegado ao poder com Costa e Silva em 1967) precisavam de um mote para colocar integralmente em prática os pressupostos da referida doutrina e, consequentemente, fechar ainda mais o regime. De fato, 1968 foi um ano bastante turbulento e, portanto, pretextos não faltaram para o golpe dentro do golpe. Inclusive, há documentos que atestam que o AI-5 já estava pronto em julho de 1968. Mas a linha dura esperava o momento certo. E ele começou a ganhar corpo em setembro. Poucos antes das comemorações de 7 de setembro, o deputado Márcio Moreira Alves (MDB-GB) fez um discurso inflamado e provocativo na tribuna da Câmara dos Deputados. Nele, Moreira Alves insuflou a população brasileira a boicotar os desfiles de 7 de setembro. E ainda propôs às jovens brasileiras que não se envolvessem com os jovens militares, os cadetes. O interessante é que o discurso não teve efetivamente maiores pretensões, tanto é que os jornais do dia seguinte não deram nenhuma repercussão ao caso. Não obstante, poderia ser exatamente o pretexto que os militares precisavam.

Sendo assim, a cúpula do governo Costa e Silva pediu à Câmara dos Deputados uma licença para que Márcio Moreira Alves pudesse ser processado. Após os trâmites regimentais da Câmara, enfim no dia 12 de dezembro foi feita a votação acerca da licença. A maioria dos deputados foi favorável à continuidade incólume do mandato de Moreira Alves. O detalhe é que o regime tinha confortável maioria nas duas casas, logo, muitos deputados arenistas votaram contra o governo.

Indignado com a decisão, o presidente Costa e Silva convocou uma reunião do Conselho de Segurança Nacional (cúpula militar e cúpula do governo). Era a "Missa Negra" ou a "terrível noite que durou dez anos". Palco: Palácio Laranjeiras. Atores: presidente da república, vice-presidente da república, principais ministros e principais líderes militares. Saldo da reunião: decretação do Ato Institucional n° 5. Tempo de validade do ato: indeterminado.

O Ato Institucional n° 5 foi simplesmente a consagração do "anti-direito". Com ele o presidente da república podia dissolver o Congresso Nacional, qualquer Assembléia Legislativa ou qualquer Câmara Municipal por tempo indeterminado. Podia cassar direitos políticos, tendo o cidadão mandato ou não. Podia demitir ministros do Supremo Tribunal Federal. Podia demitir qualquer servidor público (civil ou militar), sem qualquer processo, sob a simples alegação "a bem do serviço público". Podia fixar residência para qualquer cidadão, tipo: "você só pode morar ali". Podia vetar a locomoção de qualquer cidadão, tipo: "você só viaja dentro do país ou para o exterior com a autorização do governo". Podia legislar por decreto-lei.

Além disso tudo, o decretum terrible também proibiu qualquer reunião de cunho político, recrudesceu a censura e estabeleceu a censura prévia. As arbitrariedades não paravam por aí. O AI-5 ainda cassou o habeas corpus em casos de crime político. Em outras palavras, militantes políticos enquadrados na Lei de Segurança Nacional não podiam responder o processo em liberdade. Aliás, os primeiros 15 dias os presos passavam incomunicáveis. Elementar: eram nesses dias que as torturas corriam soltas.

No final de 1978 o AI-5 foi revogado. Felizmente, o Brasil virou essa página infeliz de nossa história, como diria Chico Buarque. Mas é imperativo visitarmos todas as páginas do livro chamado Brasil, inclusive as páginas infelizes. E por essas e outras é que temos que concordar com o ex-premier britânico Winston Churchill: "a democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os demais"!

3 comentários:

Andrecatuaba disse...

Ainda estou para descobrir qual é a verdadeira vocação do exército brasileiro, se é que ele tem alguma. Instituição conservadora e reacionária por excelência, responsável pelo aprofundamento da exclusão social durante o "milagre econômico", hoje vive sucateado e não presta nenhum serviço a população.

Belo texto Bruno, e mérito para pequena digressão cenográfica.

Huguera disse...

"Se um homem puder sentir qualquer prazer em desfilar aos sons de música, eu desprezo este homem... Não merece um cérebro humano, já que a medula espinhal o satisfaz." Albert Einstein.

Realmente, coisinha chula o tal do exército, no sentido clássico da instituição. A página do AI-5 foi virada, mas os abusos dos que detém o monopólio da força persistem, e estou me referindo mais à própria polícia.

A propósito, Pra não dizer que não falei das flores é de fato uma singela guarânia, mas com uma letra fortíssima como era de costume do Geraldo Vandré.

chico macedo disse...

Bruno,

Desculpe a demora no comentário. Estou num período de grandes transições.

Tenho pouco a acrescentar sobre o assunto do post, mas indico fortemente o filme O ano que meus pais saíram de férias. Justamente 1969/1970. Os anos mais de chumbo dos anos de chumbo. No período, duas grandes dúvidas no Brasil:

- até quando iria o autoritarismo dos militares?

- Pelé e Tostão poderiam jogar no mesmo time na Copa do México?

abraço, chico.