segunda-feira, 31 de março de 2008

Aniversário de uma tragédia: reflexão





Há 44 anos, o Brasil passava pelo pior dia de toda sua história. No dia 31 de março armou-se o golpe militar de 1964. Nesse dia, as tropas do gal. Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, pois na noite anterior o presidente João Goulart (Jango) fizera no Automóvel Clube, centro da cidade maravilhosa, um acalorado discurso em defesa dos militares de baixa patente, os chamados praças. Os militares já bastante insatisfeitos com Jango, consideraram tal ato a gota d'água, afinal, segundo eles, o presidente da república estava incentivando a quebra da hierarquia e da disciplina, os principais pilares da caserna.

Não obstante, o golpe de 1964 foi gestado durante pelo menos 15 anos. Em 1949, foi fundada no Rio de Janeiro a Escola Superior de Guerra (ESG), instituição responsável pela elaboração da doutrina de segurança nacional e pela sofisticação da conspiração militar. O golpe poderia ter sido dado em 1954, mas o suicídio do presidente Vargas acabou sendo um golpe de mestre, na medida em que a comoção popular inviabilizou o ingresso dos militares no poder àquela altura. Outras tentativas foram dadas, porém sem muito clima para que o golpe lograsse êxito.

Os desequilíbrios econômicos provocados pelo governo JK (1956-1961), deixaram para Jango um péssima herança. Assim sendo, seu governo (1961-1964) conviveu com indicadores econômicos muito ruins, a inflação foi gigantesca e o crescimento do PIB foi pífio. Isso ajudou em muito a criar um clima favorável para o levante. A economia é um elemento fundamental para viabilizar ou não um golpe. Se um governo está bem neste quesito dificilmente cairá.

No dia 13 de março de 1964, na central do Brasil, Jango anunciou que seu governo levaria a frente as chamadas reformas de base. Era um conjunto de reformas, fundamentais para o avanço de qualquer país, mas que assustaram profundamente os setores conservadores do Brasil. Seriam feitas reformas nos setores agrário, habitacional, tributário, educacional, entre outros. Isso mexeria nas estruturas do Brasil e enfim colocaria o país no caminho da dita modernidade. Ora, o Brasil é um dos poucos países do mundo que não realizou a reforma agrária. Ela historicamente é uma bandeira das revoluções burguesas, pois favorece o melhor aproveitamanto da terra, aumentando a produção e o consumo, elementos salutares para o desenvolvimento do sistema capitalista. De qualquer modo, aqui no Brasil a reforma agrária acabou se tornando bandeira das esquerdas.

A maior prova da reação da direita brasileira às reformas foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ato feito em resposta ao comício de Jango na central do Brasil. Essa marcha acabou reunindo cerca de 300 mil pessoas na capital paulista, o que demonstrou que um golpe teria o apoio de parte significativa da sociedade brasileira. O ato repudiou o comunismo e o sindicalismo e seu principal slogan era o sugestivo: "Deus salve o Brasil". O recado estava dado.

Portanto, este era o cenário. Uma economia desarranjada, um quadro político de tensão e radicalismos, além de turbulências dentro dos quartéis. Tudo isso no contexto da guerra fria, o que fazia com que os EUA tivessem uma atenção redobrada aos acontecimentos do Brasil. Segundo os estadunidenses, o Brasil, em hipótese alguma, poderia se transformar numa nova Cuba. E eles participaram do golpe, com a Operação Brother Sam. Navios com armas e combustível foram enviados para o litoral do Espírito Santo e seriam usados caso houvesse resistência do janguismo. Isso não ocorreu e os EUA acabaram não participando diretamente do golpe no Brasil, como o fizeram no Chile. De qualquer forma, deram o respaldo, o que já é bastante significativo.

Dito tudo isso, num aspecto não podemos nos enganar. O golpe de 1964 não foi meramente militar e sim civil-militar. Apoiaram e legitimaram o golpe: a CNBB (cúpula da Igreja); a CNI e a FIESP (burguesia nacional); a OAB (que deveria primar pela legalidade, mas não, fez o contrário); a grande imprensa (menos o jornal Última Hora e a TV Excelsior); e grande parte da classe política (a UDN como um todo e grande parte do PSD). Aliás, nesse sentido vale ressaltar que o golpe efetivamente foi dado pelo presidente do Congresso Nacional, o senador Auro de Moura Andrade. Os militares no dia 1º de abril se uniram em torno do golpe e ameaçaram prender Jango, mas ele ainda não tinha sido deposto. Até que numa tumultuadíssima sessão no Congresso, o senador Auro declara vaga a presidência da república, sendo que o presidente Jango estava em Porto Alegre. A vacância só poderia ser declarada caso o presidente estivesse no exterior. Nesse momento, foi rasgada a constituição. Na madrugada do dia 1º para o dia 2, o presidente do Congresso empossou como presidente provisório da república, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Era a conclusão do golpe. O interessante e bizarro é que esse foi o único golpe de Estado dado pelo chefe do poder legislativo de que se tenha notícia.

Quem perdeu? Naquele momento: o PTB (partido de Jango, que logo em seguida teria vários parlamentares cassados), a UNE (estudantes), o CGT (sindicalistas) e a parte minoritária da Igreja (membros seguidores da teologia da libertação) e da Imprensa. O jornal Última Hora passou a se enfraquecer cada vez mais depois do golpe e a TV Excelsior não teve sua concessão pública renovada, em 1970, e fechou suas portas. Mas quem perdeu de verdade mesmo foi o país como um todo. O Brasil naquela época estava caminhando no rumo certo. Nunca houve tantas pessoas inteligentes juntas pensando o país. Tínhamos na educação, Anísio Teixeira e Paulo Freire. Nas ciências sociais, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Hollanda. Na economia, Celso Furtado. Na política, Miguel Arraes e Leonel Brizola. Na arquitetura, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Na música, a Bossa Nova, o samba e a chamada MPB, que estavam no auge de sua qualidade. No cinema, o Cinema Novo. No teatro, José Celso Martinez e Sérgio Brito. Na literatura, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto etc. Na imprensa, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Alberto Dines e toda a turma que depois veio a fazer parte de O Pasquim. Enfim, o Brasil nunca foi tão inteligente e toda essa brilhante geração foi em diferentes matizes mutilada.

O país perdeu uma ótima oportunidade para se entender e para se encontrar, já que gente gabaritada para isso não faltava. Tudo isso porque uma elite retrógrada não aceitou dividir nada em 1964. Essa mesma elite é hoje a principal responsável pelas desigualdades sociais e pela violência no país. Isso quem falou foi o ex-prefeito de São Paulo, o conservador Cláudio Lembo (DEM), no contexto dos ataques do PCC em São Paulo, no ano de 2006.

Não querendo terminar o texto de forma tão amarga, acredito que hoje o Brasil vive seu melhor momento desde o início da década de 60. A economia vai bem, as preocupações com educação e saúde são crescentes e a democracia parece estar consolidada. Portanto, ainda que 1964 tenha representado um retrocesso de 50 anos, é hora de olhar para frente e recuperar o tempo perdido. O Brasil há de ser um país mais inteligente, justo e solidário!

4 comentários:

Andrecatuaba disse...

Quisera eu viver no Rio de Janeiro dos anos 50, passeando por uma Copacabana limpa, lendo os melhores cronistas do país no jornal do dia e quem sabe até esbarrar com o Tom Jobim dedilhando um sambinha no violão... ficar sabendo que Guimarães Rosa lançou um tal de "Grande Sertão", que Vinícius de Morais representa o Brasil no exterior dançando bolero com todas as estrelas do cinema... ouvir uma tal de "chega de saudade" no rádio e achar aquele troço incrível... ir no Maracanã ver Pelé, Garrincha e cia... a vida devia ser muito chata nessa época...

chico macedo disse...

Muito bom texto, Bruno. Uma coisa que passou a me interessar muito a partir de umas aulas que tive no último ano são as contradições dentro da própria estrutura militar. Os conflitos do pessoal da Linha Dura com os que diziam que seria algo "temporário".

Contradições que chegam a "superfície civil" de forma esquisitíssima no atentado do Rio Centro.

O Golpe Militar das aulas de História da escola torna tudo monolítico demais ao meu ver. Os militares com uma coisa só. A esquerda com uma coisa só etc.

abraço, chico.

Huguera disse...

Vou fazer um comentário que sai um pouco do texto, é mais uma curiosidade.

Vocês sabiam que em 1971 houve uma partida amistosa em Florianópolis entre Figueirense e Avaí em homenagem à "Revolução Democrática" de 1964. A partida acabou aos 10 minutos do segundo tempo com uma briga generalizada que se espalhou pelas arquibancadas, os 22 jogadores foram expulsos.

Enfim, uma bela homenagem para um momento tão grandioso da política brasileira...

Anônimo disse...

Golpe é o caralho, foi Revolução de 64, segundo um velha guarda de onde eu trabalho.
Fanfarronice à parte, o golpe realmente representou um retrocesso político em todos os sentidos.
Mas também proporcionou ao país belíssimos momentos de expressão cultural popular, apesar de terem sido gestados pelo momento socio-político vivido. Esses lampejos não apagarão, jamais, os exílios e a intensa perseguição, aliada à tortura.