terça-feira, 15 de abril de 2008

Esquerda e direita: a velha dicotomia






O magnata das comunicações Silvio Berlusconi está voltando ao poder na Itália. É, a Europa realmente vira-se cada vez mais para a direita. Nicolas Sarkozy na França, Angela Merkel na Alemanha e Berlusconi na Itália atestam essa tendência. Mas vou usar o primeiro-ministro italiano apenas como gancho para uma discussão bastante recorrente nos dia de hoje: trata-se dos termos direita e esquerda, no debate político. Afinal, os termos ainda procedem atualmente ou não passam de anacronismo, derrubados junto com o muro de Berlim?

Como sempre, gosto de historicizar as questões que abordo. Nesse caso, voltemos ao ano de 1789. Cenário: Revolução Francesa. Os termos direita e esquerda surgem nesse contexto. Na Assembléia Constituinte, à esquerda do rei sentavam-se os representantes do chamado terceiro estado, à época burguesia e proletariado juntos. À direita do monarca sentavam-se os representantes dos primeiro e segundo estados, respectivamente, clero e nobreza. Pois bem, os que se sentavam à esquerda anseavam por reformas políticas, sociais e econômicas, ao passo que os do lado direito desejavam a manutenção do status quo. Portanto, a direita seria sinônimo de conservadorismo e a esquerda sinônimo de progressismo.

A dicotomia direita/esquerda ganha novos episódios no trancorrer do século XIX. Com a vitória das revoluções burguesas nos principais países europeus, a burguesia - que fora revolucionária - passa a ser reacionária, afinal, passou a reagir contra eventuais mudanças, já que agora estava no poder. Em outras palavras, antes das revoluções burguesas, a oposição era entre burguesia e proletariado (revolucionários) de um lado versus nobreza e clero (reacionários) do outro. Após as revoluções burguesas a dualidade passou a ser burguesia (que se unira aos decadentes clero e nobreza) de um lado e proletariado do outro.

Ainda durante o século XIX, o filósofo alemão Karl Marx deu um ar científico a todo esse debate. Nas obras, A Ideologia Alemã, Manifesto Comunista e sobretudo em O Capital, Marx destrincha questões da relação capital e trabalho (luta de classes); esmiuça o surgimento e amadurecimento do sistema capitalista; e propõe um novo modelo de sociedade, o comunismo, que teria como etapa inicial o socialismo, ou ditadura do proletariado. Surgia, portanto, o chamado socialismo científico.

Com Marx, as lutas operárias ganharam novo fôlego. Até que, já no século XX, no ano de 1917, a Rússia fez uma revolução socialista. Era o início do chamado socialismo real. A Rússia era ainda um país rural e feudal. Tinha uma classe operária bastante incipiente, logo, na ótica de Marx ainda não reunia condições para uma revolução socialista, que deveria ser notadamente proletária. Mesmo assim Lenin, com apoio massivo de camponeses e conseguindo organizar um partido extremamente disciplinado (Partido Bolchevique), a seu modo fez a revolução socialista ser vitoriosa na Rússia. A partir disso, o mundo passou a contar com dois modelos ideológicos antagônicos. Os termos cordão sanitário (usado de 1917 a 1939) e cortina de ferro (Guerra Fria) conferem a referida divisão ideológica.

Isso posto, vamos tentar refletir e definir os termos direita e esquerda. Direita seria basicamente a luta pela manutenção da ordem, nesse caso, a manutenção de eventuais privilégios e sobretudo a proteção à propriedade privada. Esquerda seria a luta pela justiça social, ou seja, para que todos do mundo tenham melhores condições de vida. Não é por nada que as lutas ambientais sejam encabeçadas por partidos de esquerda. De maneira bem sucinta, pode-se relacionar a direita à ordem e a esquerda à justiça. Daí, por exemplo, uma invasão de terras improdutivas ser vista como um crime por membros e simpatizantes da direita e como um luta legítima por justiça por membros e simpatizantes da esquerda.

Dito tudo isso, fica bastante claro que os termos direita e esquerda não são anacrônicos. Primeiramente, eles não morreram com a queda do muro de Berlim, simplesmente porque não nasceram com a Revolução Russa. Ou seja, eles antecedem em mais de um século à Guerra Fria. Segundo, a luta entre os que defendem a ordem e manutençao dos privilégios versus os que defendem a justiça social e mais igualdade, nunca deixou de existir, é uma questão atemporal. Terceiro, a dicotomia capital/trabalho ainda é proeminente, aliás esta sequer nasceu com o advento do sistema capitalista, ainda que tenha sido modificada por ele.

Portanto, os termos direita e esquerda nasceram enquanto conceitos somente em 1789, porém enquanto práticas políticas, econômicas e sociais eles sempre existiram. A história da humanidade foi e é pautada por injustiças, opressão, exploração e dominação do homem pelo homem. Esses aspectos não são leis (já que na história não existem leis), mas são regularidades, afinal sempre existiram (talvez com exceção das ditas sociedades igualitárias). Ora, o que eram os tribunos da plebe, em Roma, senão pessoas que lutavam por mais justiça social.

Agora de uma coisa não tenho dúvidas: atualmente há uma crise nos partidos de esquerda, que vem à tona sobretudo quando eles estão no poder. A emergência do neoliberalismo e a conseqüente predominência do sistema financeiro deixaram os partidos de esquerda sem uma agenda tipicamente de esquerda (repetição inevitável da palavra esquerda). Quando eles chegam ao poder, não conseguem se livrar das "chantagens" oriundas da globalização. No Brasil e na Grã-Bretanha isso ficou bem claro. Lula e Tony Blair não conseguiram dar respostas verdadeiramente de esquerda ao avanço do neoliberalismo. Nas linhas gerais, eles mantiveram uma política econômica semelhante à de seus antecessores, ainda que com algumas diferenças. Lula, por exemplo, não deu continuidade às privatizações.

Contudo, isso não significa que a esquerda morreu ou que os conceitos direita/esquerda não fazem mais sentido. Esquerdistas de todo o mundo estão em busca das tais respostas. Elas podem perfeitamente ser encontradas e, a partir disso, possibilitar a construção de uma nova agenda de esquerda, que freie o avanço do neoliberalismo.

Alguns países da América Latina estão nessa marcha. Venezuela, Bolívia, Equador, e Nicarágua afrontam o neoliberalismo. O detalhe é que as economias desses países são muito menos complexas do que, por exemplo, a brasileira. Assim sendo, as "chantagens" neoliberais acabam surtindo muito menos efeitos neles. Afinal, quanto mais complexa e "financeirizada" for uma economia, mais difícil é fazer uma agenda de esquerda. Mas não é nada impossível.

Portanto, a tendência atual da Europa é a direita, pois os europeus querem "conservar" o que lá já existe. E a tendência atual da América Latina, ainda que com diferentes nuances, é a esquerda. O avanço avassalador do neoliberalismo nas décadas de 80 e 90 deixou muitas marcas nos países latinos e o avanço das esquerdas nada mais é do que uma contundente resposta a isso.

É isso, a dicotomia direita/esquerda está mais viva do que nunca. E de uma coisa fiquem certos. Quando ouvirem de alguém que não existe mais esquerda nem direita, das duas, uma: ou a pessoa não está muito a par dessa questão, ou ela é de direita. Sendo que a segunda hipótese é a mais provável, haja vista o senador Artur Virgílio, que vez por outra vem com essa conversa em seus discursos direitistas na tribuna do senado.

Para finalizar, quero deixar claro que não considero existir apenas duas vias: esquerda e direita. Acredito em aproximadamente sete: extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita, direita e extrema-direita. O detalhe é que no frigir dos ovos - como no golpe militar de 1964, no Brasil - tem-se apenas duas opções: ou se escolhe a esquerda ou a direita. Ficar no centro é ficar do lado de quem está mais forte. Portanto, as sete vias, às quais me referi, valem mais precisamente como estratégias e táticas para se chegar ao poder. Mas em situações-limite, ou se dá seta para a esquerda, ou para a direita. Eu sempre sigo à esquerda!

3 comentários:

Huguera disse...

Muito bom! Se por um lado a figura da "esquerda/direita" tem uma origem bem definida, por outro o antagonismo entre a mudança e a conservação se perde no princípío dos tempos. E também não vejo um fim nessa peleja, faz parte dos tantos antagonismos que fazem do mundo esse eterno vir-a-ser (extrapolando as causas meramente humanas).

De qualquer forma, a escolha pela esquerda (mudança) se mostra bastante inteligente por um lado, no final a mudança sempre prevalece enquanto a conservação perece. Por outro lado lutar contra os conservadores, mesmo na natureza, é tarefa árdua, principalmente pros pioneiros, e exige uma boa dose de sacrifício.

O interessante nisso tudo, é que a grande questão que a esquerda enfrenta hoje (manter sua "agenda" mesmo no poder), é extremamente complicada. Faz parte do processo natural que a mudança de hoje deseje determinada conservação amanhã. Mas sempre vai aparecer uma nova mudança, o mundo não pára. (Particularmente rejeito teorias de princípio, meio e fim. Por isso o "Socialismo Científico" me é tão estranho quanto o Apocalipse Cristão, guardadas as devidas proporções)

Andrecatuaba disse...

É isso aí, Bruno. Escrevi um texto mais ou menos sobre isso um tempo atrás: "a perniciosidade da ladainha liberal". Não acredito no liberalismo crônico nem no centralismo bolchevique. O ideal seria a famosa "terceira via", o que só se daria nas Condições Normais de Temperatura e Pressão (CNTP, dos problemas de química). Como se sabe, o mundo não é assim. No Brasil, por exemplo, uma democracia ainda jovem e marcada pelas indiossincrasias da colonização Ibérica, o caso é bem outro. Temos uma das piores distribuição de renda do mundo, fomos o último país a abolir a escravidão. "No frigir dos ovos", como você disse com propriedade, é que vemos quem é quem. Claro que os termos direita e esquerda são anacrônicos e não explicam a complexidade do mundo hoje, mas são os que temos. Usamos uma pá de conceitos da Grécia antiga (filosofia, política, democracia) diariamente, sem medo de parecermos obtusos ou ultrapassados. Valeu!

tresporquatro disse...

Caro Cameschi,

Vejo que tens dado mais atenção às reflexões do que ao futebol. Ganha-se por um lado, perde-se por outro. Quanto ao conteúdo de seu bom texto, concordo com uma série de coisas. Mas como afagos ao ego não são bem o meu estilo, comentarei apenas as discordâncias.

Primeiro: discordo se suas observações acerca da direita – do que ela é, representa, significa. Os motivos já foram expostos em conversas de bar. O que me motiva a discordar é o mesmo que me tem levado a discordar do discurso histórico criado sobre a política de uma maneira geral. Lembremos, portanto, que me ancoro em certos pressupostos não marxistas (metodologicamente falando) para observar essas questões políticas. Não encontro ecos entre o meu pensamento e o que preconiza o materialismo histórico. Particularmente falando, concordo com as perspectivas históricas que assim avaliam o que nós, pensadores-historiadores escrevemos: criamos categorias de análise, e buscamos encaixar em nossos modelos práticas que são próprias de cada época e/ou região. Neste sentido, vejo, sim, anacronismo em pensar o mundo em termos de direita ou esquerda, tanto quanto de creditar o funcionamento do “motor da história” à produção dos meios de subsistência do ser humano.

Na minha opinião – pretensamente humilde, e, portanto, livre de ser encarada como a verdade última e absoluta – a dissolução entre “o que de fato é direita ou esquerda” teve fim no momento da Revolução Francesa (!!!). Ok, sei que isso parece absurdo, e de acordo com a maioria dos grandes (e pequenos e médios) intelectuais de nossa era (e de outras eras, e das que virão), de fato o é. Mas eis o meu ponto: as práticas políticas, consoantes com seus pressupostos ideológicos, realizadas em cada época/região, seguiram todo um modus operandi específico. Elas mesmas se identificavam com algum dos lados, mas a práxis, em si, era sempre singular. A divisão entre esquerda e direita, essa dicotomia da vida de um modo geral, é não mais que uma maneira de pensarmos em tudo a partir de pólos opositores e auto-excludentes. Não sei precisar de onde surgiu essa tradição de pensarmos o mundo sempre entre estes tais dois pólos – positivo/negativo, branco/preto, certo/errado, bem/mal – mas quero crer que, sob esses dois paralelepípedos, a natureza em festa do mundo é muito mais complexa.

Dito isso – de forma nada concisa – não vejo como colocar sob uma mesma égide a Revolução Bolchevique, o Khmer Vermelho, e a dupla eleição de nosso companheiro e, de outra maneira, o Dulce, o Baby Bush e o Fernando e-ninguém-cala-esse-chororô Henrique. Creio, portanto, que as maneiras de dominação – quando as há – são mais complexas e fluidas. Questões como a religiosidade, gênero, raça – só para citar as mais clássicas, mas sabendo que são/podem ser infinitas – estão imbricadas numa totalidade monumental, numa trama, numa teia. Governos de esquerda – e nesse caso não excluo o PT – já demonstraram que se alinham, em várias questões, com establishment, tanto como empresas privadas que visam lucro – como o Google – já demonstraram capacidade de democratizar sua produção como Marx jamais poderia prever.

Mas claro que isso são apenas especulações, sujeitas a alterações até o fim do expediente. Apenas mais um elo nessa corrente de pensamento que tenta compreender esse mundim-de-meu-deus. De toda a sorte, aquele abraço. Thiago.