segunda-feira, 10 de março de 2008

Crise na América do Sul


Semana passada, o assassinato de Raul Reyes, a liderança nº 2 das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs), sacudiu a América do Sul. Esse acontecimento trouxe de forma latente novas reflexões sobre o continente americano em geral e sobre a Colômbia em particular. Nessa pespectiva, para que essas reflexões sejam melhores é fundamental historicizar a questão.

Primeiramente, é preciso se perguntar de onde vem essa grande violência na Colômbia. Bom, o primeiro acontecimento elucidativo dessa problemática nos remete ao ano de 1948. Nesse ano, o candidato liberal à presidência da república, José Gaitán, foi assassinado por conservadores (vale dizer que liberais e conservadores monopolizavam o poder na Colombia à época). Isso desencadeou uma onda de violência que ficou conhecida como bogotazo. Nos anos que se seguiram, houve uma guerra civil no país. De uma lado estavam os conservadores, do outro estavam liberais e socialistas (novos atores políticos, então). Esse período ficou conheciso como la violencia (1948-1953).

Até que em 1964, surge as FARCs, então o braço armado do Partido Comunista da Colômbia, que estava na ilegalidade. As FARCs, já que não tinham condições de agir dentro da legalidade, optou por práticas terroristas, como seqüestros a autoridades. Isso pode servir para repudiar a organização, afinal o terrorismo não é nada simpático mesmo. Mas a grande questão vem a seguir. No início dos anos 80, as FARCs resolveram deixar as armas para se tornarem apenas um partido político. O problema é que eles não foram aceitos no jogo, sendo massacrados pelo poder instituído, a essa altura já fortemente ligado aos EUA. O saldo disso foi cerca de 3.000 assassinatos entre seus militantes, fazendo com que aos poucos a organização fosse novamente jogada para a clandestinidade. No ano de 2002, as FARCs passaram a ser tão somente um grupo guerrilheiro.

Para as Farcs se sustentarem eles passaram cada vez mais a atuar no narcotráfico. Os moralistas de plantão consideram isso inaceitável e os tratam simplesmente como bandidos. Ora, mas na Colômbia os paramilitares de direita, base de sustentação do governo de Álvaro Uribe, também atuam fortemente no tráfico de drogas. Vale salientar também, que dois ministros de Estado de Uribe e 32 deputados de seu partido foram julgados e condenados pela justiça colombiana, por ligações com o tráfico de entorpecentes. Além disso, tanto as FARCs, quanto os paramilitares praticam o seqüestro e possuem reféns. Portanto, não há santos nessa história.

Mais um elemento importante para entender a violência atual na Colômbia, é o dedo dos Estados Unidos no país. A título de exemplo, a Colômbia é hoje o terceiro país do mundo a receber ajuda militar e econômica dos EUA, ficando atrás apenas de Egito e Israel. Essa interferência estadunidense se tornou mais contundente no ano 2000, com o Plano Colômbia. O plano visava em princípio ajudar as autoridades colombianas no combate ao tráfico de drogas no país. Nada mais hipócrita do que isso, tendo em vista que o governo colombiano também atua no tráfico. Além disso, por que os EUA não fecham suas fábricas de armas, já que eles se preocupam tanto com o narcotráfico internacional? Não há tráfico de drogas sem armas e a Colt sabe muito bem disso!

O fato é que o referido plano serviu para os EUA aumentarem muito sua influência na Colômbia. Uma prova disso é exatamente o assassinato de Reyes na semana passada. A localização do guerrilheiro foi feita com ajuda da CIA, que atua livremente no país. Assim, os EUA - que vêm perdendo parte de sua influência na América do Sul, afinal alguns governos (Venezuela, Equador e Bolívia) são frontalmente contra o gigante do norte - jogam todas as suas fichas na Colômbia. Cada vez mais a Colômbia torna-se o "porta-aviões" do Tio Sam na parte sul do continente.

Voltando à morte de Raul Reyes, vale chamar atenção para duas ilegalidades. A primeira é a condenação à morte sem prévio julgamento, o que caracteriza a ação como assassinato por parte do Estado colombiano. A segunda, a que mais deu pano para manga, foi a invasão ao Equador por parte da Colômbia. A invasão do espaço aéreo ou terrestre é tido como uma prática absolutamente condenável dentro das relações internacionais. E foi isso que a Colômbia, com a ajuda dos EUA fez. Tal atitude desencadeou uma grande crise diplomática no continente. Além do Equador, Venezuela e Nicarágua também romperam relações diplomáticas com a Colômbia. Equador e Venezuela chegaram inclusive a militarizar suas fronteiras, mas felizmente não se chegou às vias de fato.

O que Uribe quis com isso? Já há algum tempo seu governo vem apertando o cerco contra as FARCs. Esse episódio é só mais um elemento disso. As FARCs têm na Colômbia hoje, uma altíssima impopularidade, sobretudo em função dos seqüestros que o grupo pratica. Álvaro Uribe sabe bem disso, e quer se aproveitar dessa situação para obter um terceiro mandato, mediante uma emenda constitucional. Em sua visão, enfraquecendo ou eliminando as FARCs, o apoio da população o conduzirá para mais alguns anos de poder. O problema é que as FARCs contam com um número significativo de guerrilheiros e Uribe não conseguirá acabar com eles. Portanto, o ideal é que em vez de uma solução militarista fosse tomada uma solução negociada, já que um número muito grande de reféns está em jogo.

Em suma, em vez de repressão cabe negociação. As FARCs, que um dia já tentaram ser apenas um partido político, pode voltar a ter essa pretensão. Para isso, é necessário que a organização seja chamada à mesa de negociações e que tenham espaço para a atuação institucional. Caso as ações continuem a ser meramente militar as perspectivas de paz passam a ser praticamente nulas. E a quem interessa isso?

5 comentários:

chico macedo disse...

Bruno,

Entendo pouco da história. Das Farc, em particular, não sabia nada. Mas o que me impressiona nisso tudo é o ponto de crise diplomática em que se chegou.

Não me pareceu que houve uma lente de aumento da mídia para esse aspecto do problema (para outros pontos sim). Fechamento de embaixada, as trocas de farpas entre os dirigentes e esse dedo americano me deu até medo.

radicalismos, Estados Unidos e interesses econômicos (petróleo, armas e cocaína (por que não?) me parecem ingredientes muito parecidos com o nosso histórico e querido Oriente Médio (temperos culturais a parte).

Uma pergunta que fiquei com vontade de fazer: será que América do Sul pode vir a ser bola da vez dos "grandes problemas" mundiais que a indústria bélica escolhe para resolver?

abraço, chico.

Andrecatuaba disse...

As FARC são extremamente impopulares não só na Colômbia, mas em todo o mundo. Ao invés de um partido político, são alguns milhares de malucos entocados na selva cheios de fuzis e metralhadoras. E ao condenar as FARC, não estou necessariamente me alinhando com o "gigante do norte." Essa polarização já foi por água abaixo (a palavra da moda não é multilateralismo?) e o mundo hoje é muito mais complexo.

Bruno Cameschi disse...

André, não é questão de polarizar o problema. Conforme, assinalei no post, quando as FARCs largaram as armas e tentaram entrar no jogo institucional, eles foram duramente rechaçados pelo governo colombiano, na década de 80. Ora, quem não tem espaço e voz para atuar legalmente o faz ilegalmente, isso é natural. Eles não são mais um partido político devido ao excessivo direitismo na Colômbia. Portanto, é muito simplista e preconceituoso vê-los como um bando de malucos. Tente se colocar no lugar de um esquerdista colombiano que tenha tentado participar da política nas décadas anteriores! Enxergar legitimidade em algo passa necessariamente por tentar se colocar no lugar do outro.
Agora, também não concordo com seqüestros e ações terroristas, coisas que as FARCs pratica. A questão é que também não condeno, justamente por não viver na Colômbia. Não posso julgar um grupo, estando eu morando no Brasil, em uma realidade totalmente distinta.O Brasil hoje oferece possiblidades de atuação esquerdista muito maiores do que na Colômbia. A coisa começa por aí.
Portanto, repito o que disse anteriormente. Seria salutar uma solução negociada na Colômbia. Se o governo enxergar as FARCs apenas como bandidos,a paz não chegará nunca. E a história mostra que ações violentas gera reações igualmente violentas, alimenta-se o "monstro". Um clichê que é a mais pura verdade.
É isso. A solução ideal seria trazer as FARCs de volta para a atuação institucional.

Bruno Cameschi disse...

Chico, acho que não. No caso do Oriente Médio, há elementos bem peculiares a explicar sua violência. Um é a notória religiosidade. O islã é bem diferente do cristianismo. O outro é que os Estados Nacionais criados ali no início do século XX são extremamente artificiais. Junta-se a isso a ganância gerada pelo petróleo, muito mais abundante lá do que aqui.

Na América do Sul a diplomacia quase sempre funcionou bem. É uma tradição, especialmente do Brasil. Poucas vezes se chegou às vias de aqui. No caso da crise da semana passada, a questão se resolveu na OEA, organização multilateral que em muitos casos funcionou e funciona até hoje. Além disso, temos o Grupo do Rio, outro organismo multilateral de negociações diplomáticas.

Agora, a indústria bélica já está presente no continente há bastante tempo. A "guerra particular" aí no Rio atesta isso.

Portanto, o que não acredito é em conflitos entre países da América do Sul, guerras entre nações. Agora, cenário que a indústria bélica internacional escolheu para atuar, a parte sul do continente já é faz tempo.

Huguera disse...

Muito bem colocada a questão hein Bruno!

É incrível como o jornalismo, em geral, não tem nenhum senso histórico e acaba pecando na análise dessa questão. O resultado é uma visão que não aborda a profundidade da questão, parece que ninguém quer entender como as coisas chegaram no pé em que estão, só querem definir quem é o mocinho e quem é o bandido. Tudo muito simples, tudo muito tosco...

Como você colocou muito bem, trazer os caras para a legalidade é a melhor solução que se pode pensar. O problema não é nem só o forte interesse estadunidense em manter essa ferida aberta, é a velha e estúpida guerra de egos, ninguém quer dar o braço a torcer.